Conheça a história de ‘Faraó’, sucesso no Carnaval de 1987
“Eu falei Faraó!” Nos últimos 30 anos, esse chamamento tem provocado arrepios e descargas de adrenalina nos diversos circuitos onde a música baiana chegou. Composta em 1987, a canção imortalizada na voz potente de Margareth Menezes e na batida marcante do grupo Olodum emergiu do gueto do Pelourinho, percorreu a Av. Sete até estourar nas rádios do país. “Faraó só tocou nas rádios porque o povo já cantava muito. A música já era uma bomba”, disse Margareth Menezes. A canção foi eleita pelos leitores do CORREIO a terceira melhor música do Carnaval de Salvador dos últimos 30 anos.
Por trás do ritmo cadenciado e da complexidade da letra, que só pelo Olodum já foi apresentada em 37 países, se esconde – ou se escondia – a figura de um dos principais compositores dos temas de blocos afros de Salvador. Luciano Gomes, hoje com 50 anos e funcionário público aposentado, não precisou de mais de uma semana para traçar os versos, alinhar a melodia e cravar o refrão que vem atravessando carnavais ao longo de gerações.
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No Festival de Música e Artes do Olodum (FEMADUM) de 1987, o tema escolhido pelo bloco foi a figura do líder do Império Egípcio. Munido de uma apostila oferecida pela direção do festival e do dom de compor, Luciano mergulhou fundo no coração do deserto do Saara e voltou de lá com uma verdadeira pérola negra da música baiana.
“A dificuldade maior foi encontrar um refrão que colasse com a narrativa do tema. Tive uma dificuldade de entender a temática porque ele é muito complexo, mas graças a Deus, deu no que deu. Fui iluminado e ela está aí completando 30 anos”, explicou Luciano.
O compositor disse ainda que geralmente inicia suas obras pelo refrão, pois quer saber como o público irá responder. “A letra pode ser forte, emblemática, mas se não tiver refrão não pega. O pessoal não responde. Você está cantando uma música e o público está ouvindo, até tentando entender, mas não responde. O povo só canta o refrão”.
De quando a música foi finalizada até o dia de apresentação no festival, Luciano, que era membro da ala de canto do Olodum, apresentou Faraó em diversos ensaios do bloco. De modo que no dia da avaliação os jurados não tiveram outra alternativa a não ser condecorá-la com o primeiro lugar.
“Na verdade, no dia do festival eu não precisei nem cantar a música porque Faraó foi cantada pelo povo. Eu cantava uma palavra e o povo cantava a música inteira. Até papagaio já cantou essa música. Pessoas que eu conheço se casaram ao som de Faraó. Isso pra mim é gratificante”, relembrou o compositor. A versão final da música ainda conta com um verso de Sérgio Participação – “Que Mara Mara Maravilha ê! Egito, Egito ê!”.
Lazinho, um dos intérpretes do Olodum, recorda que a música abriu as portas para que muitas pessoas de fora conhecessem o movimento negro. “Muita gente achava que o movimento negro era um movimento revanchista, o que não é verdade. O movimento negro é um movimento de reivindicação dos espaços”, disse Lazinho.
Ainda segundo ele, o sucesso de Faraó foi surpreendente, sobretudo pela falta de apoio aos movimentos negros. “As entidades negras não tinham espaço no mercado fonográfico como hoje. Era uma novidade tanto para quem estava ouvindo como para a gente que estava apresentando a música”.
O êxito da música para Lazinho é explicado por um velho ditado. “Os mais velhos dizem que quando criança gosta de uma música, essa música vai ser cantada durante muito tempo. E foi o que aconteceu”.
Outro representante do Olodum, Matheus Vidal, teve o primeiro contato com a canção ainda no lugar de fã. “Foi no final da década de 1980, como adorador do Olodum que eu era. Em 1993 eu entrei no grupo como percussionista, então eu já presenciava a força da música e daqui a dez anos estaremos aqui falando dos 40 anos de Faraó”, projetou.
Já Margareth Menezes, disse que Luciano Gomes foi muito preciso ao escrever a canção. “Ele conseguiu construir uma coisa muito interessante contando uma história e naquela narrativa a melodia vem crescendo também. Uma melodia feita em duas notas. E na hora que chega no ‘eu falei Faraó’ [refrão] o povo já está dentro daquela história”, definiu.
Margareth, aliás, hesitou em cantar a música que veio a se tornar o seu maior sucesso. Ela contou que recebeu um bilhete de Djalma Oliveira para gravar a canção, porém, a princípio não levou muita fé na proposta.
“Djalma queria uma mulher pra cantar a música junto com ele. Ele havia me visto fazendo uma participação num show de Dino Brasil e foi me procurar. Fiquei meio assim porque não conhecia a música, não tinha ainda uma relação direta com os blocos afros”, contou.
Ao se deparar com a letra da música, Margareth rapidamente mudou de ideia. “Na épóca estava estudando mapa astral, e quando li aquele versos eu falei: vou gravar. Foi na hora. Daí ele me deu a fita com a gravação, que tinha o Luciano Gomes batucando na mesa, levei pra casa e a gravação já era no outro dia”, disse.
Ela relembra que enquanto estava tirando a música no violão, em casa, os atores que moravam com ela no bairro do Dois de Julho começaram a aparecer fantasiados como os personagens da história faraônica. “Veio um vestido de Osíris, outro de Íris, Tutancamôn, aquilo me ajudou muito a decorar a letra. No outro dia fui na WR (gravadora) e gravei a música em parceria com o Djalma Oliveira. E foi assim que tudo começou pra mim”, disse.
Djalma, que na época estava deixando a banda Novos Bárbaros para seguir carreira solo, conta que conheceu a música pela TV enquanto estava em uma espécie de retiro em Praia do Forte. “Estava recolhido em um sítio vendo o Carnaval pela televisão quando vi o Olodum descendo a Castro Alves com o refrão ‘ê Faraó’. Eu falei: cara, essa é a novidade. Eu larguei tudo e voltei para Salvador”.
De volta à capital, ele foi atrás do Olodum e chegou até Luciano Gomes. “Começamos a compor o arranjo da canção que já estava na boca do povo e nós conseguimos fazer a primeira gravação em disco. Esta é considerada a gravação original de Faraó”. No mesmo ano, 1987, Djama gravou a música no disco Faraó, e o Olodum em Egito Madagáscar
Ilustre desconhecido
O sucesso alcançado pelos intérpretes, no entanto, não se refletiu em reconhecimento para o compositor da obra. Ao ver sua música tocada no Carnaval pela primeira vez, Luciano confessou ter sentido um misto de sentimentos. “Foi uma emoção muito grande estar de longe observando e pensando: essa música é minha. Mas também veio a frustração de você ouvir uma canção sua tocando, o povo cantando e ninguém saber que você é o compositor”, lamentou.
Luciano disse que passou muito tempo chateado pela falta de reconhecimento e que o compositor precisa ser mais valorizado. “Às vezes a pessoa está num lugar que está o intérprete que canta a sua música e ele passa por você, que compôs, e lhe dá as costas. Vai abraçar o íntreprete achando que ele é o bam bam bam, mas sem o compositor não existe o intérprete. Precisamos ser mais respeitados. O compositor não pode ser esquecido porque ele é o criador”, disse.
O cenário, por sua vez, está mudando. Hoje em dia, os autores das obras que dão o tom da folia já não ficam mais tão em segundo plano. “Graças a Deus isso está mudando e eu vou lutar para que isso mude para todos os compositores, pricipalmente os dos blocos afros”, alertou Lucionao. O atual presidente do Olodum, João Jorge, prestou uma homenagem aos 30 anos de Faraó que seguirá até o mês de novembro.
Margareth também prestará sua homenagem à canção e ao compositor durante o Carnaval. No dia 25, ela receberá a imprensa e convidados para celebrar com um bolo, antes de seguir com o trio Afro Pop pelo Circuito Barra-Ondina.
Compositor de muitos hits e ritmos
Apesar de ter sido um marco na sua carreira, a trajetória de Luciano no mundo da música não começou com o hit Faraó e nem se encerrou com ele. O músico foi responsável pela primeira canção composta para o Olodum após o retorno do bloco, nos anos de 1980. Raça Negróide anuncia a volta do grupo e, tal qual Faraó, também evoca elementos da África.
“Raça Negróide foi a música mais executada nas festas de largo, mais cantada do Carnaval, o Olodum ganhou, se não me engano, 11 troféus em festivais com essa música”, lembrou. Ainda segundo ele, o sucesso de certa forma o preparou para o que viria a ocorrer com anos depois com Faraó.
“Quando eu recebi aquele boom de Faraó, com a moçada cantando e refletindo sobre a música, eu já havia sentido com a outra canção. Só que quando Faraó partiu pra mídia, quando começou a ser executada, fizeram disco com ela, cantores renomados passaram a interpretá-la, aí já foi uma mudança”.
Outro grande sucesso de Luciano foi interpretado pela cantora Daniela Mercury. Swing da cor mostra um outro lado do compositor. Segundo ele, suas obras são dividias entre canções temáticas, como é o caso de Faraó, e de poesia, que dependem da inspiração que surge no momento.
Luciano ainda guarda muito material inédito que ele pretende lançar em breve. São cerca de 160 canções de diferentes ritmos que serão levadas não só para o Olodum como também para o Muzenza, Malê Debalê e outros blocos que Luciano construiu estreitos laços ao longo da sua carreira. “Tenho uma abertura muito grande para escrever as canções porque eu já participei de grupos de samba, de afoxé. Então de cada coisa eu tenho um pouquinho da pegada”, completou.